O Caminho da Libertação feminina – por Artur Alonso

 

"Aquele que conheceu apenas a sua mulher, e a amou, sabe mais de mulheres do que aquele que conheceu mil" (Leão Tolstoi – do seu romance “Anna Karenina”)

O Caminho de libertação feminina, em essência tem sua semelhança com o caminho da libertação masculina, pois a Divindade não deixa de ser “andrógina” – e suas diversas nomenclaturas simplesmente aspetos significativos da mesma – que servem como guias, em determinados processos, para auxiliar as criaturas em seu caminho evolutivo.

Os “gémeos espirituais” como já temos reparado em outros textos representam aquela “parelha manúsica” – guia, instrutora, governadora fiel a Lei e orientadora dos povos, como representação – encarnação, nos mundos inferiores, da parelha primordial cósmica (parelha celestial) de todas as mitologias.

No mundo celta galaíco a filha que faz os trabalhos de transformação evolutiva no lado feminino é Brigantia, que em associação com seu irmão Lugh movem a roda evolutiva nos caminhos da realização exterior nos planos materiais. Sendo que na evolução interior (Brigantia e Lugh) servem de arquétipo do filho / filha em transformação, procura da ascensão – libertação dos apegos da matéria. Libertação previa para poder o ser (aquele “Self”) sair – transcender os mundos efémeros da fisicalidade e voltar à origem eterna – sem forma física.

Os gémeos espirituais nos remetem aos trabalhos do arcano VI – “Os Namorados” – O caminho do equilíbrio dos contrários em aparência (aparência de luta pelo domínio falso – efémero – fricção); mas completares pela analogia. Saber implementar o rigor amoroso e o amor rigoroso permite o equilíbrio dos contrariantes. Emoções, caminho coracional, deverão convergir com a razão do caminho mental – intelectual; ate finalmente fundir-se, ambos, no caminho do meio da elevada intuição. Aquele óctuplo caminho do Budha que nos liberta do sofrimento, uma vez conhecidas e experimentadas aquelas 4 nobres verdades – sobre a existência da dor.

Em muitas outras culturas o “caminho da libertação interior feminina” é representado pelos diversos aspetos psicológicos das diversas deusas, como no caso grego. Livro a estudar aqui “As deusas e a mulher” de Jean Shidona Bolen (tema que já temos aprofundado em outros escritos, que se podem encontrar no nosso blogue “A Chave de Púshkara”)


Na mitologia sumério – acádia – babilónica temos a revolução de Innana – Isthar na busca de sua contraparte masculina Tamuz – Narrativa da aventura da heroína – semelhante a do deus filho solar - com descida aos abismos – crucifixão ritual (Innana pendurada dum gancho pelo pescoço) – e ressurreição (morte para material efémero – renascimento para espiritual eterno). Renascimento cósmico de Innana - Isthar como “estrela da manha” – associação ao planeta Vénus

Reconhecendo-se aqui o arcano III da Imperatriz – associação com as deusas de fertilidade, abundância e criatividade. A Matriarca. A mulher grávida fecunda, com capacidade de idealização e projetação – com criatividade. No seu caminho deverá cuidar-se da preguiça, falta de vontade e anulação por falta de motivação que cria incapacidade.

Associação a esfera cabalística de Netzach – perigo de excessiva sensualidade, sexualidade – abundância mal encaminhada – no lado positivo poder realizador espiritual: empoderamento.

Cruzar o limite marcado pelas Portas de Isthar tem o mesmo sentido que transcender – concretizar pelo esforço, determinação e fé a magia da Transcendência.  

A Deusa fértil também guarda dentro de si o embrião da transformação interior – fertilidade de conhecimento, que com a habilidade daqueles bons conhecedores elevados, será possível utilizar este poder para ir recortando as plantas doentias, que infestam o nosso particular jardim.

De seu ventre da mãe fértil – também nasce a filha guerreira, protótipo de transformação.

Pelo caminho de Netzach a Hod – se une a vitória feminina de Vénus com a gloria masculina de Mercúrio. Este é o caminho do Pendurado – o Enforcado do arcano XII – o caminho do sacrifício pessoal, da filantropia, da entrega a uma superior causa – Luta contra a renúncia, o abandono, o desinteresse provocado naquela primeira fase do esquecimento de si mesmo. A submissão a um dever maior, o impulso dos iniciais sonhos generosos, deverá pela experiência ser endireitado – na procura da resolução do maior dos planos: a luta contra as sombras que impedem o progresso.

Lembra a crucifixão de são Pedro cabeça abaixo – os 9 dias e 9 noites de Odin - Wottan pendurado – cabeça abaixo do “Freixo sagrado” – para obter o conhecimento salvador das letras sagradas “as runas” - Se desce cabeça abaixo aos infernos – se luta com as sombras – ate limpar a alma – regressa – ressurreição – cabeça arriba – elevando-se, renascendo para limpo – brilhante – batismo de luz.


Lembra o simbolismo da crucifixão em forma de X de Santa Eulália (padroeira de Barcelona – cuja catedral leva seu nome) Crucifixão com decapitação incluída – Após dita decapitação uma pomba voou do pescoço da mártir e Santa. Simbolismos do cortar a cabeça – morte da mente profana – da mente habilidosa, não ética. A pomba renascendo do pescoço depois da queda da cabeça – da perda da mente inferior – simboliza o trunfo do espírito santo.

Estamos diante da lenda de Santa Marinha de Aguas Santas (possível transposição galaica da história de Santa Margarida de Antioquia) misturando elementos próprios da cultura celta. A tentativa do opositor – demoníaco de macular a alma luminosa do espírito livre – O corte da cabeça da Santa que deu três votes e, ali onde os lábios beijaram a terra – nasceu uma fonte – A fonte de aguas imaculadas – Observamos os elementos transformadores – a luta da luz contra a escuridão – o corte da cabeça – simbolismo de morte da mente não ética – o nascer da fonte – indicativo de conexão com a Fonte Original – Espiritual – de onde todo promana

Um episódio de transcendência – transformação – pela guerra interior contra as sombras – verdadeiro arquétipo das Deusas guerreiras – filhas sábias e conhecedoras de ofícios nobres – como a Atena grega encarna mesmo o carácter civilizador –

Atena, filha paternogênica de Zeus – surgida da sua própria cabeça – simbolismo de nascida da Mente Elevada – No mundo celta a cabeça simboliza o local da alma mais sublime – correspondente na cabala a alma já em processo de espiritualização de Neshamad –

Atena – na transformação interior é a mergulhadora (imersão interior nas profundas aguas) – daí ser a instrutora das artes de navegação e construção de navios – O bom navio, bem equilibrado, permite transitar pelos mares turbulentos e chegar a bom porto, após vivenciar a “odisseia interior” que traz conhecimento sobre um mesmo, e permite a continua mudança, fechando o ciclo do crescimento e maturidade.

 A simbologia de “Metis” da astucia da raposa, a força do leao e suavidade da pomba – nos falam deste mistério do transcendente -  E da capacidade da Inteligência ética libertadora

 A Deusa Guerreira Transformadora

No segundo episódio do “Devī Māhātmyam” – da tradição indiana – observamos à Grande Deusa sob sua forma guerreira Durgã (Khali), Senhora da energia da cólera divina que se revolta contra o caminho auto-destrutivo, impondo Ela seu poder de destruição, dissolução e extinção contra os representantes demoníacos da via da perdição.

Em este episódio o universo estava sendo atacado pelo poderoso demónio-búfalo, Mahiāsura. Incapazes de combatê-lo e temendo ser aniquilados, todos os deuses masculinos transferem para Durgā os seus poderes. Aqui a Mãe útero da receção – acolhe os poderes expansivos da contraparte divina masculina. Lembra aqui a Cosmogonia de Hesiodo no tocante a Deusa Mãe, anterior aos Deuses e homens – associação ao II Trono ou II Logos das Mãe cósmica dos teosofos – do qual descem as hierarquias de divinas – os Devas – para realizar os trabalhos próprios da criação no mundo físico...

Montando um leão, Durgā combate Mahiāsura e seu poderoso exército. É uma batalha muito difícil, da qual finalmente Ela sai vencedora, montando sobre o búfalo, cortando sua cabeça e depois matando o espírito do demónio que tenta escapar pelo pescoço cortado do búfalo. Observamos aqui uma outra forma do famoso simbolismo da transformação, inscrito na raiz do Zen japonês – chamado “a Doma do Boi” - controlo – domínio do plano psico-emocional

Na terceira parte do texto observamos como a Deusa Una Tripla – emite Kali – seu poder destrutivo – sua forma negra – do seu terceiro olho – para vencer demónios muito poderosos.

Vemos como o demónio Raktabīja é quase impossível de aniquilar, devido a que cada gota do seu sangue que caí ao chão transformando-se em um outro demónio igual a ele (alegoria do mal não poder ser destruído, se não transformado) – Kali antes de eliminar Raktabīja lambe suas feridas para que nenhuma gota poda cair ao chão (alegoria da vitoria da transformação das sombras em luz – o mal transformado não deixa restos que possam replicar sua estela maligna na terra)


A vitoria do lado feminino da divindade sobre as sombras demoníacas – reflete o poder da transformação do rigor preciso, no caminho da libertação, do feminino sagrado. Desenvolve a vitoria das habilidades intelectuais elevadas, associadas a vontade espiritual e ao poder da Auto-consciência – estamos aqui a relacionar-nos como Arcano I – o Mago – os caminhos do Mercúrio mais alto.

Pela contra o poder demoníaco eliminado e transformado pela Deusa – em seus aspetos combativos como Durgã ou Khali – expressavam também a mala utilização da Inteligência.

Devemos ser conscientes que quando utilizamos a inteligência para a obtenção desonesta, na forma dum aproveitamento malicioso das oportunidades – invertemos o caminho. Nos afastamos do caminho da redenção, penetrando no caminho da perdição. Aqui a inteligência guiada pela malícia se torna em simples habilidade associada ao caminho inferior do trunfo da egolatria.

O texto, pela contra, nos monstra a vitoria exterior da energias cósmicas criativas sobre a sua polaridade oposta – as energias destrutivas. Estas energias habitam também em nós, seguindo o preceito hermético de “arriba como abaixo...”

No aspeto interior psicológico se aprecia a vitoria do nosso Eu Imortal – Superior – o Divino em nós, desde o caminho de transformação do feminino sagrado, sobre os aspetos auto-destrutivos da nossa inferior personalidade. A feminina alma – carregada das sombras “cármicas” fica limpa pela impressão da luz vitoriosa da transformação. Para vencer aquelas sombras, como nos ensinou Isthar – Innana devemos descer ate os abismos, onde aqueles demónios psicológicos se encontram.

Do encontro com as sombras psicológicas trataram importantes estudosos da psicologia humana como o próprio Sigmund Freud, Carl Jung… ou mais recentemente Ken Wilber, San Keen. Enfrentando a dupla natureza humana simbolizada no plano literário pela excelente narrativa de Robert Louis Stevenson, e seu famoso “ O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde” – publicado por primeira vez em 1886


Os demónios psicológicos

Assim os diversos demónios, no seu aspeto interior psicológico, nos mostram os defeitos a  ser vencidos e transformados pelos seres humanos, para finalmente transcender e elevar-nos acima do “vale das lágrimas” – o plano do aprendizado material – da rectificação dos erros – segundo os estudos cabalísticos.

“Niśumbha” e “Śumbha”, representam, respetivamente, a vaidade e arrogância.

“Madhu” com significado de “mel” – o apego doce, representam as tentações do que nos resulta agradável, e com sua atração nos amarram a roda do mundo – roda das reencarnações – roda do Samsara.

“Kaiabha”. Palavra com significado de “espinho” nos monstra, pela contra o arrepio – rejeição do desagradável, da dor. Aqui a adversão pode dominar-nos e, finalmente, também encadear-nos , e à roda de renascimentos.

Estes demónios juntos formam o “oponente” – Opositor a nossa evolução: o famoso “Guardião do Umbral” – aquele que temos que vencer para acessar a um estado mais elevado de consciência – Entrar num novo “Portão simbólico” do conhecimento.


O Saber do Feminino

Sendo precisamente que aquele feminino recetor – guarda, custodia o acervo do conhecimento – que nos permite acessar ao despertar da “ignorância” – para ir ascendendo pela espiralada senda que conduz de novo a origem.

A taça – útero – recipiente feminino concentra aqueles saberes, como no simbolismo artúrico da Taça do Graal – mas somente os já limpos de mácula, elegidos, vitoriosos de ciclo poderão beber do licor da verdadeira vida…

Sendo precisamente aquele feminino recetivo que une, acomoda, cria a forma, enquanto o masculino expande, procura a máxima longitude, o feminino fecha – cria o círculo de confiança. O masculino sendo a viga que sustenta o teto, a semente que precisa de útero, o feminino a casa. Daí falarem o proverbio chinês: "Cem homens podem formar um acampamento, mas é preciso uma mulher para se fazer um lar"

Unindo nosso masculino e feminino, no interior; unindo o casal homem – mulher no exterior, se forma a complementaridade que pelo amor próprio (no trabalho interno) e pelo amor incondicional (no trabalho externo) tem a capacidade de harmonizar as polaridades.

Na união natural de ambos, masculino e feminino, se insere a semente na fértil matriz, para dessa amorosa união nascer a nova vida. Em este local do feminino, abrindo seus portões aparecem os múltiplos caminhos; cada um deve avançar pelo seu. O caminho de cada um chegado seu momento de máxima ascensão se torna caminho de retorno.

No caminho feminino da libertação da sombra, também se pode obter a chave para acessar, porta a porta, degrau a degrau, ao cume elevado que nos permita saltar- iniciar o voo da liberdade, quando nossas assas de luz estejam bem crescidas…

Dentro da local feminino do encontro com a sombra – nos becos mais obscuros da nossa alma, na aceitação do sagrado vínculo com a vida, na compreensão das emoções negativas e conhecimento da sua raiz. Na superação da culpa, dos complexos de inferioridade. Na ascensão e obtenção de poder evitando a serpente egolátra da arrogância, da vaidade, da falta de humildade… Está o início de nosso verdadeiro caminho: a aventura de ir conhecendo o verdadeiro significado da vida.


A vida, a natureza a Deusa mãe terrena, a mulher humana e o conhecimento dos segredos da Deusa – Mãe formam para a mulher e o homem, parte desta aventura…

Para conquistar esse caminho você deve confrontar seus medos e ultrapassá-los; pois tal como afirmava Eleanor Rooselvelt: "Você precisa fazer aquilo que pensa que não é capaz de fazer" – Para poder finalmente afirmar: vencendo o medo a incapacidade o impossível, finalmente, se atinge!

E aquele que tinha ficado sem voz, agora pode falar e ser ouvido.

"Levanto a minha voz, não para que eu possa gritar, mas para que aqueles sem voz possam ser ouvidos" (Malala Yousafzai)



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