O Ovo genesíaco: o Ovo de "Hiranya-Garba" – por Artur Alonso
“Eis que antes das emanações serem emanadas e as criaturas serem criadas,
a Luz Superior Simples tinha preenchido toda a existência.
E não havia vazio, tal como ar vazio, é um vácuo,
mas tudo estava preenchido com essa Luz Simples Ilimitada.
E não havia tal parte como uma cabeça, ou fim,
mas tudo era Uma, Luz Simples, equilibrada igual e uniforme-mente,
e esta foi chamada “a Luz de Ein Sóf (Infinito)”.
E quando sob a Sua Simples Vontade, veio o desejo de criar os mundos e emanar as emanações,
para trazer à luz a perfeição das Suas ações, Seus nomes, Suas denominações,
que foi a causa da criação dos mundos,
então, Ein Sóf restringiu-se a Si Mesmo, no Seu ponto médio, precisamente no centro,
Ele restringiu essa Luz, e afastou-se para longe para os lados que rodeiam aquele ponto
médio.
E lá permaneceu um espaço vazio, o ar vazio e o vácuo
precisamente do ponto médio.
Eis que essa restrição foi igualmente ao redor desse ponto médio vazio,
para que o espaço vazio circulasse uniforme-mente ao seu redor.
E após a restrição, permaneceram um espaço vazio e vago
precisamente no meio da Luz de Ein Sóf,
um lugar foi formado, onde as Emanações, Criações, Formações e Ações possam residir.
Então da Luz de Ein Sóf, uma única linha pendeu do Alto, baixando para aquele espaço.
E através dessa linha, Ele emanou, criou, formou e fez todos os mundos.
Antes destes quatro mundos, no Ein Sóf havia Ele e Seu Nome são Um, em maravilhosa,
oculta união,
e até nos ângulos mais próximos a Ele
não há força nem realização em Ein Sóf
pois não há mente criada que O possa alcançar,
pois Ele não tem lugar, limite ou nome”
Eis este maravilhoso e substancioso poema do grande sábio hebreu Isaac Luria, o Ari – cabalista nascido em Jerusalém em 1534, que viveu no Cairo, e durante 7 anos esteve isolado numa casa as margens do rio Nilo, vivendo como um eremita – que resume a sua filosofia.
Isaac Luria achava tinha recebido sua doutrina cabalística diretamente do profeta Elias. O poema fala do início – o Ovo também nos fala do início. E popularmente ainda nos perguntamos: quem foi primeiro a galinha ou ovo? Um jogo que reflete a unidade do começo.
No poema podemos observar que ao restringir-se a luz e criar a vacuidade – se forma uma taça – útero – conduto. Ventre da Mãe Cósmica, que permite que a luz do Ain Soph (Ein Sóf) – traçando uma linha do Alto para o baixo – no Abismo fundo – possa penetrar e semear – neste útero, fertilizando o óvulo – para formar, a seguir, aquele “inicial ovo genesíaco”.
O Ovo do mundo – pode ser gerado e frutificado, permitindo a futura criação da vida– Surge aqui ideia do Logos Uno – Trino, que contem os três tronos – ou três pessoas simbólicas de todas as mitologias (Pai- Mãe - Filho) - Surgem, pois, as três Hipóstases (O Uno – Trino da existência substancial): a 1ª Hipóstase do Pai – a luz da vontade de vir a ser – de criar; a 2º Hipóstase da Mãe – a amorosa receção / recolhida / acolhida, que recebe o conhecimento da semente / da luz do Pai, para gerar (ação feminina de gestar) os mundos – e a 3º Hipóstase do Filho / Filha – que realizaram os trabalhos de espiritualizar a matéria, através dos Tempos, eras, ciclos... até atingir a Perfeição do próprio Logos Trino.
A rutura do Ovo – criação dos mundos – possibilita a manifestação física - Na tradição grega observamos, através dos seus mitos, o nascimento do Céu e a Terra, após esta eclosão do Ovo Genesíaco ter acontecido -
(Eclosão do ovo, associada à teoria do “Big-Bang” ? – O ovo simbólico eclodindo – explodindo no início para formar os mundos da matéria? Associação simbólica do “ovo cósmico” à hipótese dum “átomo primordial”?)
Num destes mitos gregos o Tempo é o gerador do Caos e do Éter – A união de ambos produz o ovo do qual vai brotar o Céu, a Terra e o luminoso Deus Phanes – Em outros mitos é o próprio Deus Primordial Phanes, nascido do Ovo Cósmico – que engendra o Tempo.
Segundo a tradição órfica o luminoso Phanes é o Pai da Noite, com a qual se une criando aquele ovo genesíaco do qual vai nascer o Céu e a Terra. Aqui este simbolismo pode ser associado a ação do Ain Soph – Ein Sóf - (no mito grego seria Phanes) - restringindo-se (criando a noite ou o abismo escuro) e injetando sua luz numa linha reta do Alto ao baixo – semente da qual o ovo primordial surgirá.
O mito indiano também se ajusta a este padrão cabalístico. Bramha é o Deus Criador que produz a mente, o ego e as substancias. O Mental pode associar-se, na sua elevação mais intuitiva ao Todo Espírito – o ego, ao lado emocional – racional que pode intermediar entre o Todo Espírito e a matéria.
O útero – que gera o ovo da manifestação – criado dentro deste círculo primordial, também é o conduto, pelo qual, no final do seu ciclo o manifestado torna (regressa) ao Todo-Uno. Regresso, após a Redenção – Reintegração no repouso ou Pralaya, como chamam os indianos aos descansos, depois da manifestação. Daí a Deusa Cósmica, ser a senhora das chaves que abrem e fecham os portões, entre o além e o aquém. Ela contem dentro de si a essência do Pai – o Alfa e Ómega – o Principio e o Fim.
O “Código de Manu” – Livro sagrado da Índia – nos diz: “Quando este Deus desperta, então o mundo se coloca em movimento. Quando adormece pacificamente, então tudo se dissolve. Em seu tranquilo sono, os seres corpóreos feitos para a ação deixam de agir, e o espírito deles cai nas trevas. Quando todos juntos se dissolvem nesta grande Alma, então ela, a alma de todos os seres, dorme feliz, em paz” A Alma que em seu seio resguarda todos os seres também é a Deusa Primordial – aspeto feminino recetivo do Todo-Uno, que no dia da manifestação ira a acordar no Círculo inicial da mesma.
Dentro desse círculo inicial que delimita o ilimitado – vagina da Mãe – se encontra a “Árvore da Vida de todas as mitologias” que conecta as três hipóstases: o Plano todo espírito do Pai – o Plano pisco-emocional da Mãe – e o Plano físico do filho/filha.
O círculo da Mãe faz a ligação – com sua barriga Alta em conexão com o todo espiritual – em sua barriga baixa associada ao material, que tem de ser espiritualizado. Daí que em esse plano segundo se planificam as Ideias (mundo das ideias de Platão) – que a seguir tentaram ser materializadas na fisicalidade.
Nosso livre arbítrio e a ignorância, própria desta realidade espiritual, junto suas limitações / impedimentos geram, todavia, uma restrição maior – que desvirtua, muitas vezes, a ideia original. Daí os cabalistas tenham uma conceção desta realidade física, alegorizada na ideia deste nosso mundo, ser o “mundo das correções” – o local onde podemos aperfeiçoar-nos, espiritualizar-nos, modificando nossas tendências mais egoístas.
Daí a versão da Kaballah ou Cabala nos falar do Ain Soph (ou Ein Sóf) preenchendo o espaço infinito, antes da criação. Quando o Ain Soph (ou O Sem Limite) se retira, concentra-se para permitir a Luz Infinita ou Ain Soph Aur (ou Ein Sóf Ohr) concentrar-se num ponto. Aparece, então, no centro um espaço vazio (surge o útero da Mãe Cósmica).
Esse espaço ou vacuidade vai estar cercado pelos dez vasos dinâmicos ou Sephirah – Esferas – que formam junto aos 22 caminhos a “Árvore da Vida” – Por meio destas esferas as realidades infinitas, podem limitar-se (mantendo sua unidade) e aparecer na sua diversidade, para manifestar-se. A luz infinita não abandonando totalmente o centro, atravessa as esferas – Sephirah – por meio duma fina turbulação: um fino ondular a energia pela Árvore da Vida, vitalizando todos os ramos.
Esta árvore, a sua vez, reflete a ideia das três hipostáses – e a conexão das mesmas como o Todo-Uno, Infinito, Eterno, Ilimitado e Incognoscível.
Pelo enramado da árvore desce nossa centelha de luz, emanação a emanação, impulso a impulso (latejar do coração amoroso) até revestir-se dum corpo físico.
Pelo chamado caminho do raio ocorre esta descida aos mundos da matéria, atraídos pelos “espelho de narciso” – reflexo da personalidade nas águas profundas da matéria...
Pela mesma árvore ascendemos, subindo, degrau a degrau, aquela sonhada “escada de Jacob”, pela espiralada senda que conduz ao eterno.
Por meio do sacrifício das “correções” até obter o conhecimento preciso que expanda nossa consciência, o suficiente, para atingir aquela “perfeição” ou tónica do Logos, conseguimos voltar ao Eterno Descanso – Quebrar a “Roda de Samsara” das contínuas encarnações.
Vemos, pois, que árvore da vida, já estava contida dentro do ovo genesíaco que, a sua vez, contem em latência os princípios da manifestação.
Daí que “Ovo Primordial” está também associado a fertilidade, em muitas tradições do nosso globo. Ainda hoje em dia nos casamentos iranianos ou Khastegari os ovos pintados, acima duma tabela, simbolizam essa fertilidade.
A tradição do zoroastro persa relacionava também o “ovo” ao simbolismo do renascimento. Na tradição chinesa, além da sua associação ao princípio da vida, estava também presente a ideia de este ovo representar o fim do inverno, e dizer a regeneração da vida.
Varias são as culturas que mantinham a tradição da troca de ovos, no início da primavera fim do inverno, afirmando esse simbolismo do ovo regenerador da vida: Ovo Genesíaco.
Quando este conceito tradicional pré cristão foi incorporado a tradição cristão, os cristãos passaram identificar o “ovo de pascoa” com a ressurreição de Cristo.
Aprofundando na tradição indiana observamos que o “Atarvaveda” nos fala do ovo de “Hiranya-Garba”, o radiante ovo, contido naquele útero primordial.
No hino de Akenaton a Rá podemos observar a ideia do coração espiritual como órgão da criação:
“Todo o que foi criado / foi criado no teu coração” – O coração no centro do Eterno – no Peito do Eterno, condiz com o primeiro oco da restrição aberto para inseminar o útero da Mãe com a Luz Incriada, que vitaliza.
Assim pois o Ovo de Hiranya-Garba cresce no interior do ventre – Taça do Graal da Mater Cósmica – que possui o líquido da eterna vida. Esta Taça conecta com o coração do Eterno, de cujos simbólicos latidos a criação (todo o criado nos mundos e universos) depende - esse latejar é o "pulso da vida". Pois deste coração surge a vontade de o Amor todo dar – de o Amor Incondicionado dar a Vida.
O Ovo genesíaco é pois incubado no seio da Grande Deusa – Mãe – alimentado pelo Coração do Eterno.
O desejo de emanar os mundos, que segundo o Mestre Ari nasce da Simples Vontade do Ein Sóf infinito, surge do Grande Amor Incondicional do Eterno, dentro do seu Coração Criativo.
O Ovo genesíaco guarda pois este dar, sem aguardar receber (sem trocas), virtude principal do Amor Incondicional impresso no Coração do Mundo.
Sendo que o o Ovo, a sua vez, contêm todo este amoroso conhecimento.
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