A CONTINUA MUDANÇA DE CICLO por Artur Alonso
"Da nossa vida, em meio da jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada" (Dante Alighieri - Canto I)
Figura central do pensamento renascentista será o Cardeal Egido de Viterbo, que na sua faceta de humanista, poeta, teólogo e mesmo reformador (lembrar que o Cardeal foi a cabeça visível da ordem a que pertencia Lutero), vai realizar a extraordinária labor de protetor da “luz do conhecimento” contra os fanáticos da rigidez.
Os fanáticos na sua rigidez criaram em esta época um entrave muito forte para o progresso da humanidade. Não tendo alternativas dentro do seu imobilismo para aquela necessária continua mudança.
O CONTEXTO
O Cardeal Viterbo, em tempos conturbados, foi avaliador e protetor dos trabalhos realizados por insignes pensadores renascentistas como de Pico de la Mirandola em Itália, ou de Johan Reuchlin na Alemanha. Mas também soube habilidosamente dar seu manto de cobertura a Cornélio Agripa, Paulus Ricci, Conrad Pellican ou Zorzi… entre outros.
Sem esta contribuição a luz que estava a propagar-se pelo Ocidente, formando o futuro centro irradiador de um novo avanço cultural e cientifico tecnológico, para toda a humanidade, não poderia ter conhecido uma continuidade histórica.
Já em 1547 o bibliografo de Basileia Conrand Gesner realiza um catalogo de textos hebreus, que vão ser utilizados pelos cristãos, dando origem a ampliação do conhecimento filosófico e místico medieval judaico (muito dele proveniente da península Celtibérica). Este ato vai abrir as portas da mística e filosofia medieval do Al-Andalus e da Provença, por meio do saber profundo da chamada Kaballah hebraica.
Este conhecimento fará sua hibridação com a filosofia e mística cristã, abrindo-se a porta a ideias que serão raiz da nova cultura que vai caminhar ate chegar as portas do iluminismo. É com este abrolhar dum impulso renovador um novo ciclo progressista individualista expansivo surge, em substituição do anterior ciclo medieval conservador comunitário e contrativo.
Contrariamente a visão superficial que temos, o suporte filosófico, que vai permitir o avanço da ciência racionalista e da própria filosofia do iluminismo (que faz do embate da razão contra uma fé decaída na superstição, sua ponta de lança) terá sua raiz primordial na metafísica neoplatónica e na teoria e prática cabalista.
Essa metafísica cabalista e neoplatónica a seu modo recolheu as achegas anteriores da Grécia, Egito, Mesopotâmia e mesmo da mística islâmica.
A situação extraordinária da Península Celtibérica, a cabalo entre o Magreb e a Europa, vai permitir graças ao espetacular centro Cordovés (destaque ao reinado de Abderraman III) o espalhar da cultural e a fusão de visões diversas do Oriente e Ocidente, dentro do ideal maior de Império Universal – onde todas as diferenças se unem pela comum essência.
Esse ideal de Império Universal – Reintegracionaista – combate a visão que exclui isolacionista (aquela que observa uma só única verdade, um único caminho e uma única revelação)
Os grandes centros cabalistas como os de Girona e Barcelona serão fundamentais em este empreendimento. O de Girona exercendo de ponte com os cabalistas provençais, que vão ir, aos poucos subindo este saber ate o centro da Europa.
Na Provença vão surgir cabalistas tão destacados como Isaac o Cego - Na Provença também vai aprimorar na narrativa a chamada "matéria de Bretanha" - Chrétien de Troyes, com “Perceval” ou le Conte du Graal (o conto do Graal); Wolfran von Eschenbach o poeta de Gawain, ambos no século XII; assim como Thomas Marlory, com (Le Morte d´Arthur) – “A Morte de Artur”, escrita no século XV; ou, foram fundamentais para influenciar o imaginário coletivo da raiz espiritual celta, já cristianizada, por toda a Europa.
Esta raiz espiritual vai assentar junto ao neoplatonismo, hermetismo e a já mencionada cabala ou kaballah, durante toda a Idade Media, na raiz psicológica das elites cientifico culturais do continente, que vão dar impulso ao Renascimento e a modernidade.
Personalidades como Bonastruc ça Porta, que exercia como médico do rei Jaime I (educado pelo Grão Mestre do Temple), teve um destaque nas disputas entre cristãos e judeus, por causa da intolerância de certos sectores eclesiásticos, no reino de Aragão.
A interpretação brilhante de Isaac el Cec sobre a Sepher Yetzirah ou “Livro da Criação” (ainda se especula, hoje em dia, da Sepher Yetzirah ter precisamente nascido em Girona) foi despertar de consciências no impulso futuro renovador. Curiosamente os estudos de Cec vão influenciar decisivamente os trabalhos filosóficos e científicos de Ramon Lluc
Outro grandioso livro – o Zohar – ou “Livro do Esplendor” é atribuído, por sua parte, por vários estudiosos cabalistas, a Moshe de Leão, um dos mais destacados membros da escola cabalista castelhana.
Pela sua parte a raiz da cidade de Toledo no Al-Andalus, guarda a semente de grão parte deste movimento, que a partir do século XVI vai influenciar fortemente junto ao neoplatonismo a Europa racionalista.
Toledo era uma magnifica cidade aberta a arte e a ciência. A cidade onde Al-Zarquiel, inventor do instrumento astronómico denominado de “xarcalia” fazia suas medições, que ficariam inscritas nas tabelas toledanas, base das posteriores tabelas alfonsinas…
O AVANÇO
Reuchlin, no ano 1616, escreve seu “De Arte Cabalístico”– dedicando-lhe o mesmo texto ao Papa Leão X (filho de Lourenço de Medici). Fora precisamente, um antepassado deste Papa, Cósimo de Medici, quem trouxera ao Mestre Pleto desde Constantinopla, anos antes de ser tomada a cidade, para refundar na Itália a Academia neoplatónica; da qual Ficino seria seu substituto.
Ficino pode ser considerado o grande representante do humanismo florentino. Com somente 19 anos escreve sua “Suma Philosophiae” – onde desenvolve seus pensamentos iniciais sobre física, filosofia e a sua ideia de Deus. Alem de estudar Galeno ou Hipocrátes, também se deixou seduzir pelo pensamento de Avicena e Averróis; é dizer pesquisou naquele centro onde a Kaballah teve mais força.
Segundo o próprio Johann Reuchlin o pitagorismo grego e a filosofia árabe, eram conciliadas precisamente pela Kaballah hebraica. No seu texto cabalista Reuchlin faz proclama do Império Universal Reintegracionaista, ao situar dentro da trama filosófica três personagens: um pagão, um cristão e um judeu, que por meio de aprofundar nos estudos cabalisticos, reconciliam suas visões, em aparência, divergentes.
Estes andamentos na Europa renascentista vão impulsar uma certa elite a favorecer o trunfo relativo da Reforma, o humanismo e o Iluminismo, que darão forma a modernidade. Sendo que essa elite, vai virar a transfundo narrativo - de liberdade individual e coletiva, pola liberdade dos movimentos do capital.
Toda a narrativa da tradição celta cristianizada na “matéria de Bretanha” vai relatar, o que na nossa época, denominou Joseph Campbell como o “caminho do herói”, que não é outra cousa que a procura espiritual da fonte original e o retorno a casa – Sendo este o verdadeiro significado da transformação do ser humano, um ser livre do medo, o desejo e a adversão.
Heinrich Zimmer o resume magnificamente na sua obra “A Conquista Psicologisca do Mal” – E este parecia ser o impulso vital do renascimento e a modernidade: a conquista da liberdade das amarras psicológicas no individual, e a procura daquela sociedade platónica encaminhada para o bem, a beleza e justiça. Sociedade que no mundo da lendas artúricas encarnava “Cameloth”
O hermetismo e cabala falam também dessa libertação, mas o novo poder económico vai modificar esse caminho - que Cusa tentou marcar.
Será precisamente o poder financeiro lombardo-veneziano, aliado do poder neerlandês, cujo partido tomará conta também da Inglaterra, quem saíra favorecido desta mudança, dando sua tónica ao ciclo mercantil ainda dominante, a dia de hoje, na humanidade.
Esta estrutura de poder, tinha perdido sua influencia, na Europa, após a quebra bancaria de inícios do século XIV, que deixaria o continente totalmente enfraquecido, após a implosão de várias dívidas soberanas em diversos reinos. Continente que vai ser todavia mais arrasado pela peste negra, dado a ruína da quebra, minorar a potencialidade para enfrentar duas crises.
Durante todo o século XV as teorias de Nicolau de Cusa – na procura de uma “justiça social” enraizaram fortemente, ao tempo que de todas as cortes de Europa os banqueiros lombardo venezianos irão sendo expulsos. Um estado presidido por um monarca mais independente vai ser a tónica deste período.
Mas ré-organizada esta estrutura e bem ciente da sua oportunidade, na modernidade, este poder privado comercial financeiro vai retomar a governança, de novo, por meio de diversas manobras – para fazer das Companhias privadas o motor da exploração alem mar da Europa – Situando um primeiro centro financeiro na Holanda, ate a quebra da bolha das tulipas. E, um segundo na Grão Bretanha, ate fins da II Guerra Mundial, com revezo para o atual hegemon: os Estados Unidos de Norte-américa.
No seu percurso habilidosamente esta estrutura derrotaria o poder comercial estatal português, o poder imperial espanhol, o poder da monarquia francesa e a tentativa soberanista de Robespierre e de Napoleão. No século XIX debilitaram e derrubaram o império chinês… Para finalmente derrubar na I Guerra mundial o poder alemão do Kaisser, do Império Austro-húngaro e do Império Otomano.
Curiosamente, a pesar, de derrubar o império russo, a continuidade dum poder opositor na União Soviética, fará esta estrutura de poder financeiro abrir o embate da Guerra Fria. Derrubada a União Soviética, por dentro, com a “Perestroika” de Gorbachev, no período Iélstin a Rússia aparentava cair no controlo deste Poder Privado Financeiro Ocidental. No entanto a chegada ao poder do presidente Vladimir Putin, devagar, por motivos geopolíticos, mudou a situação, chegando ao confronto da atualidade.
O DECLÍNIO DA ONDA
“A mente aquele horror me perturbando, Disse a Virgílio: — “Ó Mestre, que ouço agora?“Quem são esses, que a dor está prostrando?” —
“Deste mísero modo” — tornou — “chora Quem viveu sem jamais ter merecido Nem louvor, nem censura infamadora” (Divina Comedia - Canto III)
Hoje essa onda expansiva progressista, que durante séculos serviu ao poder financeiro privado corporativo, que se serve do Estado Nação para controlar a sociedade, está vivenciando uma fase de perda de poder
Uma retirada lenta da Ásia e África; está a obrigar a este poder a procurar tentativa de afiançar-se no continente Americano e na União Europeia (como portos de segurança ante a tempestade que se avizinha). Enquanto tenta enfraquecer ou travar o avanço de novos centros multipolares.
A vez que se levanta, em contraposição ao velho ciclo comercial progressista, um novo ciclo cívico conservador.
Ciclo novo onde o poder individualista – liberal – auspiciado pelo Poder Financeiro Privado – virado a Poder Monopolista – começa a deixar espaços vazios, que estão a ser preenchidos pelo novo poder Estatal Soberanista – Multi-nodal, Multicultural e Policêntrico.
O ideal de liberdade individual, fora do controlo excessivo do poder eclesiástico e estatal, tem deixado passo, no seu percurso vital – e nesta etapa final de declínio – a um liberalismo consumista, virado no ocidente a uma falta de perspetiva que avança para um niilismo cego, esgotado num pessimismo existencialista, desanimo, descrença e queda na amoralidade.
Em contraposição um novo ideal que volta procurar a raiz da ancestral, a tradição como base para construir a sociedade, e o referente conservador como forma de travar uma inercia progressista começa a tomar o revezo.
O avanço progressista e expansão consumista é visionada no Sul Global, como destrutiva. Esse progresso sem limite é visionado como anti-natural, dado o planeta ter recursos limitados, cuja abundância requer do períodos de regeneração. Assim esse progressismo comercial agressivo é temido. Esse expansão dum mundo globalista, baseada em “regras” ao serviço da agenda de poder Ocidental, é observada como demasiado rápida, para poder assentar-se no seio duma sociedade e ser absorvida pela mesma.
A nova visão acredita num avanço mais demorado, para ser melhor assimilado pelas sociedades humanas, que pela sua natureza, tem ritmos mais lentos…
Esta nova forma de observar o mundo está a constituir-se como alternativa firme, de todo Sul Global, que anela sair do “neo-colonialismo” económico, que marcou as dinâmicas da segunda metade do século passado.
Este novo Sul Global que olha um Estado Forte como única ferramenta para confrontar o poder Corporativo Privado, começa a perder o sentido de inferioridade, nascido do atraso social, económico e cultural frente a modernidade ocidental; precisamente amarrando-se aqueles valores tradicionais, que o fazem sentir-se mais firmes, frente a um Ocidente, para eles olhado, como falto de valores.
As antigamente sonhadas “sociedades ocidentais” (mesmo sendo ainda demandas pela imigração crescente, cada vez mais difícil de integrar) começam a ser olhadas pelo Sul Global como decadentes.
A ENCRUZILHADA
O embate pois entre o modelo globalista individualista – progressista – do poder Privado Ocidental, contra o poder Estatal – coletivista – conservador – e multipolar do Sul Global, aparenta ter seus pontos de fricção mais quentes na Ucrânia; no confronto de Israel contra o Hezbollah no Líbano e Hamas em Gaza… Aquecendo, aos poucos, o clima pré-bélico na Península de Coreia, no Taiwan…
Podendo estender esses focos ate a Servia e Kosovo; o Cáucaso com a Geórgia… e a fricção da Ucrânia afetando a Moldávia e a Transnistria …
Perigo que pode, de aquecer em excesso e continuar a estender os pontos de fricção, inflamar o mundo numa Guerra Total onde as armas atómicas podem entrar em cena.
Daí a necessidade de procurar um acomodo geopolítico.
O que já semelha não restar dúvida é a mudança cíclica em cernes estar a tomar corpo. Dado que os ciclos sempre tem o seu revezo, e os centros de poder mudam, pela mesma inércia da sua vitalidade, com seu nascimento, crescimento e dissolução.
Ciclo vital que tem a ver com aquelas energias dinâmicas presentes em toda a natureza, que impulsam a criação, manutenção e renovação
A manutenção chama hoje pela conservação, como ontem o impulso da modernidade chamou pela renovação do Renascimento e a racionalidade do Iluminismo.
“O relâmpago brilhou e ansiei pelo oriente. Tivesse brilhado no oeste, para lá me voltaria. Queimo pelo relâmpago e seu brilho, não por este ou aquele lugar na Terra.” (Trecho do poema "O fogo" de Ibn Al-Arabi)
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